Wednesday, November 02, 2011

Hey Jude


Naquela época, eu não aceitava que você me amasse do seu jeito. Foi por isso que quando você resolveu me fazer uma surpresa e cantar 'Hey Jude' fiquei paralisada. O seu cover era provinciano. Juro que tentava me convencer de que deveria gostar, mas você desarticulava os sons,  dizia 'into your heart' de forma esganiçada, com um olhar meloso, sem graça. Era dissonante, pueril. No final, você imprimiu a letra e me deu. Aí eu queria morrer. O que deveria fazer com a letra de uma canção que eu sabia de cor e salteado? Fiz uma força tremenda para me desprender da decepção. Foi inútil. Ingenuamente, você havia assassinado a minha música preferida. Não sabia o que dizer. Qualquer palavra sincera expressaria desafeto.

Quando finalmente concordou em me levar de volta pra casa, a ruína já havia se instaurado. Descemos no elevador do seu prédio e fiquei em pânico só de imaginar que na semana seguinte você poderia entoar "The long and winding road". Pior, eu teria que gostar só pra lhe deixar contente. Não iria conseguir. Não suportaria presenciar outro assassinato sem criticar. Entramos no seu carro em silêncio. A situação me constrangia. Saltei do carro já com o término em mente. Não poderia continuar namorando com alguém que havia maculado por inteiro sete minutos de uma perfeita melodia. Fechei a porta imaginando que jamais escutaria Hey Jude novamente sem me lembrar da sua malfadada cantoria solo.

Entrei no meu prédio indignada. Subi o elevador indignada. Cheguei em casa indignada. E de indignação passei a raiva. Como você pode ser tão tosco e estragar tudo? Peguei bode. Não poderia mais te ver. Era inimaginável um novo encontro. Ficaria sempre tentando adivinhar qual música dos Beatles entraria na fila para ser sacrificada. No dia seguinte, quando você me ligou, não tive dúvida. E mesmo que fosse imaturo terminar por telefone,  era preciso salvar as músicas.

De lá pra cá, nem você e nem eu ouvimos de novo a música-que-virou-tabu, até que ontem o meu professor de voz sugeriu: por que você não canta Hey Jude? Recordei com carinho o dia em que você resolveu tomar aulas de  violão só para me impressionar. Lembrei que, naquela fase, era mimada, adolescente, desentendida da vida. Por que um rapaz iria se esforçar para me cativar? As artimanhas da conquista eram coisas inexistentes em mim. Talvez ainda sejam. Você sabe, percebo estranhos os ziguezagues das relações. Do tempo. Insólitos os caminhos que nos fazem atinar para o destino. Olhar pra trás, anos depois.  Sim, eu era insensível. Quem sabe continue. Quem sabe. Você tinha um jeito singular de expressar o amor que sentia, uma maneira única. Ainda tem. E tem razão, resisti, questionei, demorei, acima de tudo demorei, mas foi assim. Só quando cantei 'into your heart' foi que aceitei que a sua forma de me amar não é minha, é sua.


1 comment:

arosaquefala said...

muito bom o texto!