Sempre quis beijar Nietzsche. Noites e noites, ficava imaginando como seria o beijo de um homem que estendeu a corda sobre o abismo e anunciou o eterno retorno. Pois bem, na semana passada, tive a honra de conhecer Friedrich Wilhelm Nietzsche pessoalmente. Recebi um convite repentino e fui assistir a uma de suas fascinantes palestras numa seleta livraria perto de casa.
No caminho, fiquei ensaiando as frases supostamente inteligentes que diria a ele, mesmo sabendo que, entre nós dois, um diálogo surpreendente não aconteceria. Pode alguém impressionar um espírito livre? Cheguei cedo e peguei um lugar na primeira fila. Aprumei-me com gosto na cadeira de madeira maciça. Durou pouco. Cinco minutos depois, julgando a mim mesma uma mulher não tão ousada, resolvi me deslocar até uma poltrona escondida no fundo.
Rapidamente o ambiente ficou lotado e ele apareceu. Não era bonito. Definitivamente não. Mas desde quando os gênios precisam ser atraentes? Bastou dizer boa noite e o meu imaginário flutuou, floresceu, flanou. Falou pouco. Falou baixo. Falou através de metáforas, obviamente. Ao final da sua breve apresentação, os convidados lançaram perguntas e discutiram o futuro da humanidade. Não me atrevi a participar. Conformei-me com uma posição de ouvinte atenta, até que uma senhora da platéia desviou do tema, fazendo uma despropositada apologia aos efeitos positivos que os livros de autoajuda geram nesta sociedade carente, devolvendo às pessoas à capacidade de superar ilusões e atuar de forma consciente e realista na esfera dos sentimentos. Não agüentei. Uma indignação me tomou o corpo e nem a minha timidez diante de Friedrich pode me deter. O elogio a receitas frívolas de felicidade em plena sessão destinada à profunda reflexão filosófica urgia ser revidado. Contestei usando um arsenal de argumentos cabais. Neste acaso providente, percebi que ele havia me notado, rindo da minha revolta desproporcionada e talvez infantil. Riu e só, nada adicionou. De minha parte, estava satisfeita, pois havia me posicionado contra a banalidade e obtido cinco segundos da atenção do meu filósofo favorito.
Após a palestra, fui até o caixa da livraria, comprei uma de suas obras e entrei na longa fila de autógrafos que pouco se movia. Quando finalmente chegou a minha vez, ele olhou para mim, pegou o livro, deu um sorriso de canto de boca, perguntou o meu nome e escreveu: Para Sofia, do olhar abismal e lúcido. Com carinho. Assinou a mensagem de forma legível e, para a minha surpresa, logo abaixo do nome, anotou o número de seu celular. Poderia esperar qualquer coisa menos que ele abrisse comigo a sua intimidade. Tampouco passou pela minha cabeça que fosse adepto dessa parafernália contemporânea e, muito menos, que eu teria acesso a uma informação pessoal. Agradeci a dedicatória e sai lisonjeada.
No dia seguinte, liguei para ele – claro! Como não ceder a Nietzsche? Em nossa breve conversa telefônica, foi simpático e logo me chamou para almoçar. Sua sugestão, que me soou peculiar, é que fossemos a um botequim de uma rua duvidosa que servia comida a quilo. Calei. Havia fantasiado Nietzsche como um homem refinado e a sua escolha me desapontou. Após um breve instante de silêncio, respondi: adoraria! Mesmo cismada com o local de encontro, tentei abstrair. Mais ainda, fui me convencendo de que os gênios são assim: usam roupas descombinadas, não se importam com primeiros encontros e esquecem a data do próprio aniversário. Sai de casa arrumada, cheirosa e otimista: será essa a minha grande chance? Já pensou, eu, euzinha, dando um beijo na boca de ninguém mais, ninguém menos do que Nietzsche?
Quando nos avistamos, apressou-se em me cumprimentar. Ao ouvir o seu olá, uma tela imagética foi projetada no meu pensamento. Nitidamente vi o Garoto Enxaqueca. Estremeci. Essa figura da MTV, por mais que fosse um desenho animado, me parecia real, bem como a lembrança daquela musiquinha estridente que irritava os ouvidos.
Juntos, caminhamos até o buffet daquele estabelecimento, digamos, módico e pragmático. Embora faltasse glamour ou romantismo, tentava enxergar o lado afirmativo de uma oportunidade singular. Comer arroz empapado com feijão queimado pode até ser banal, mas, na vida, tudo é uma questão de circunstância. Não é todos os dias que se come uma feijoada requentada com Nietzsche. Aquela era uma aventura revolucionária, conclui. Sendo assim, tentei esquecer a minha decepção romântica e focar na oportunidade da minha vida: entrar para a história como a professora de filosofia que beijou Nietzsche.
Iniciamos uma conversa e, em pouco tempo, percebi que conseguir um beijo havia deixado de ser a grande ambição histórica da minha vida. Seus gestos eram óbvios e sem graça. O seu olhar, de peixe morto, e a sua narrativa, mórbida – como lhe agradava falar sobre doenças! Comecei a me apavorar, a evitar o seu hálito critico e o seu corpo fleumático. E se ele, de rompante, me pedir um beijo? Inconcebível. Tentei abafar a escuta para bolar um plano de escape daquele self-sevice que cheirava a pastel. Comecei a ruminar como conseguir uma aspirina para a minha dor de cabeça. Nietzsche até tinha muitas qualidades, mas “pegada” decididamente não era uma delas.
Diante deste contexto bizarro, já não fazia mais a mínima diferença a percepção que ele tinha de mim. A minha única meta era me livrar dele o mais breve possível. Pensei em algumas desculpas, todas mesquinhas e sem criatividade. O seu discurso hermético me entediava. Sua língua articulava verbetes mortos. Seria grego? Pior, comecei a achá-lo um bobo. Sim, pois só um homem sem discernimento emocional prefere construir um tratado metafísico do que trocar um olhar sedutor com uma mulher. Será que ele não percebeu que o nosso almoço tinha um cunho erótico? Infrutífero. A sua verborragia já atingia a transcendência, quando finalmente saiu do discurso aforístico: um pudim de leite. A simplicidade tranqüilizou os meus ouvidos exaustos de tanta dialética. Exultante, exclamei: sim! Sim! E emendei categoricamente: podemos pedir a conta também. Espantado, perguntou: você não quer café? Só bebo café às segundas-feiras e hoje é sexta, soltei. Desapercebido do meu sarcasmo, iniciou uma discussão sobre a inutilidade das rotinas acachapantes. Interrompi sem rodeios: preciso ir embora. Concordou.
Quando a conta chegou, antecipou: como você prefere pagar? Foi a gota transbordante. Além da minha profunda decepção com o encontro, teria que dividir valores irrisórios. Onde foi parar o cavalheiro de educação clássica exemplar? Vale refeição, retruquei. Trabalhar em uma faculdade tem seus privilégios. Qual é o seu plano de saúde? Nocaute. O meu - até aquele almoço - venerado Friedrich, preferia trocar informações sobre o sistema de benefícios das instituições acadêmicas do que segurar na minha mão. A minha paixão se dissolveu. Não haveria retorno. Não, senhor! Irrevogável. Levantei apressadamente. Até um beijo no rosto seria impensável. Paguei com dinheiro. Ele, sentado, parecia alheio às minhas atitudes e desaprovações faciais. Sem atentar para a minha rebeldia feminina, perguntou: qual o valor da hora aula? Já de costas, continuei caminhando. Os livros vou vender para o Sebo do Messias, planejei. Negativo, vou doar, mais digno. Peguei um ônibus até a Av. Paulista, em busca de um lugar onde pudesse desanuviar e tomar um café. Ainda no coletivo, reli a dedicatória: “Para Sofia, do olhar abismal e lúcido. Com carinho.” E li mais uma vez e outra vez em voz alta. O real caiu verticalmente na minha cabeça perfurando a minha imaginação. Friedrich Wilhelm Nietzsche queria filosofar comigo. Só. Entrei numa livraria e perguntei: tem livro de autoajuda?
No caminho, fiquei ensaiando as frases supostamente inteligentes que diria a ele, mesmo sabendo que, entre nós dois, um diálogo surpreendente não aconteceria. Pode alguém impressionar um espírito livre? Cheguei cedo e peguei um lugar na primeira fila. Aprumei-me com gosto na cadeira de madeira maciça. Durou pouco. Cinco minutos depois, julgando a mim mesma uma mulher não tão ousada, resolvi me deslocar até uma poltrona escondida no fundo.
Rapidamente o ambiente ficou lotado e ele apareceu. Não era bonito. Definitivamente não. Mas desde quando os gênios precisam ser atraentes? Bastou dizer boa noite e o meu imaginário flutuou, floresceu, flanou. Falou pouco. Falou baixo. Falou através de metáforas, obviamente. Ao final da sua breve apresentação, os convidados lançaram perguntas e discutiram o futuro da humanidade. Não me atrevi a participar. Conformei-me com uma posição de ouvinte atenta, até que uma senhora da platéia desviou do tema, fazendo uma despropositada apologia aos efeitos positivos que os livros de autoajuda geram nesta sociedade carente, devolvendo às pessoas à capacidade de superar ilusões e atuar de forma consciente e realista na esfera dos sentimentos. Não agüentei. Uma indignação me tomou o corpo e nem a minha timidez diante de Friedrich pode me deter. O elogio a receitas frívolas de felicidade em plena sessão destinada à profunda reflexão filosófica urgia ser revidado. Contestei usando um arsenal de argumentos cabais. Neste acaso providente, percebi que ele havia me notado, rindo da minha revolta desproporcionada e talvez infantil. Riu e só, nada adicionou. De minha parte, estava satisfeita, pois havia me posicionado contra a banalidade e obtido cinco segundos da atenção do meu filósofo favorito.
Após a palestra, fui até o caixa da livraria, comprei uma de suas obras e entrei na longa fila de autógrafos que pouco se movia. Quando finalmente chegou a minha vez, ele olhou para mim, pegou o livro, deu um sorriso de canto de boca, perguntou o meu nome e escreveu: Para Sofia, do olhar abismal e lúcido. Com carinho. Assinou a mensagem de forma legível e, para a minha surpresa, logo abaixo do nome, anotou o número de seu celular. Poderia esperar qualquer coisa menos que ele abrisse comigo a sua intimidade. Tampouco passou pela minha cabeça que fosse adepto dessa parafernália contemporânea e, muito menos, que eu teria acesso a uma informação pessoal. Agradeci a dedicatória e sai lisonjeada.
No dia seguinte, liguei para ele – claro! Como não ceder a Nietzsche? Em nossa breve conversa telefônica, foi simpático e logo me chamou para almoçar. Sua sugestão, que me soou peculiar, é que fossemos a um botequim de uma rua duvidosa que servia comida a quilo. Calei. Havia fantasiado Nietzsche como um homem refinado e a sua escolha me desapontou. Após um breve instante de silêncio, respondi: adoraria! Mesmo cismada com o local de encontro, tentei abstrair. Mais ainda, fui me convencendo de que os gênios são assim: usam roupas descombinadas, não se importam com primeiros encontros e esquecem a data do próprio aniversário. Sai de casa arrumada, cheirosa e otimista: será essa a minha grande chance? Já pensou, eu, euzinha, dando um beijo na boca de ninguém mais, ninguém menos do que Nietzsche?
Quando nos avistamos, apressou-se em me cumprimentar. Ao ouvir o seu olá, uma tela imagética foi projetada no meu pensamento. Nitidamente vi o Garoto Enxaqueca. Estremeci. Essa figura da MTV, por mais que fosse um desenho animado, me parecia real, bem como a lembrança daquela musiquinha estridente que irritava os ouvidos.
Juntos, caminhamos até o buffet daquele estabelecimento, digamos, módico e pragmático. Embora faltasse glamour ou romantismo, tentava enxergar o lado afirmativo de uma oportunidade singular. Comer arroz empapado com feijão queimado pode até ser banal, mas, na vida, tudo é uma questão de circunstância. Não é todos os dias que se come uma feijoada requentada com Nietzsche. Aquela era uma aventura revolucionária, conclui. Sendo assim, tentei esquecer a minha decepção romântica e focar na oportunidade da minha vida: entrar para a história como a professora de filosofia que beijou Nietzsche.
Iniciamos uma conversa e, em pouco tempo, percebi que conseguir um beijo havia deixado de ser a grande ambição histórica da minha vida. Seus gestos eram óbvios e sem graça. O seu olhar, de peixe morto, e a sua narrativa, mórbida – como lhe agradava falar sobre doenças! Comecei a me apavorar, a evitar o seu hálito critico e o seu corpo fleumático. E se ele, de rompante, me pedir um beijo? Inconcebível. Tentei abafar a escuta para bolar um plano de escape daquele self-sevice que cheirava a pastel. Comecei a ruminar como conseguir uma aspirina para a minha dor de cabeça. Nietzsche até tinha muitas qualidades, mas “pegada” decididamente não era uma delas.
Diante deste contexto bizarro, já não fazia mais a mínima diferença a percepção que ele tinha de mim. A minha única meta era me livrar dele o mais breve possível. Pensei em algumas desculpas, todas mesquinhas e sem criatividade. O seu discurso hermético me entediava. Sua língua articulava verbetes mortos. Seria grego? Pior, comecei a achá-lo um bobo. Sim, pois só um homem sem discernimento emocional prefere construir um tratado metafísico do que trocar um olhar sedutor com uma mulher. Será que ele não percebeu que o nosso almoço tinha um cunho erótico? Infrutífero. A sua verborragia já atingia a transcendência, quando finalmente saiu do discurso aforístico: um pudim de leite. A simplicidade tranqüilizou os meus ouvidos exaustos de tanta dialética. Exultante, exclamei: sim! Sim! E emendei categoricamente: podemos pedir a conta também. Espantado, perguntou: você não quer café? Só bebo café às segundas-feiras e hoje é sexta, soltei. Desapercebido do meu sarcasmo, iniciou uma discussão sobre a inutilidade das rotinas acachapantes. Interrompi sem rodeios: preciso ir embora. Concordou.
Quando a conta chegou, antecipou: como você prefere pagar? Foi a gota transbordante. Além da minha profunda decepção com o encontro, teria que dividir valores irrisórios. Onde foi parar o cavalheiro de educação clássica exemplar? Vale refeição, retruquei. Trabalhar em uma faculdade tem seus privilégios. Qual é o seu plano de saúde? Nocaute. O meu - até aquele almoço - venerado Friedrich, preferia trocar informações sobre o sistema de benefícios das instituições acadêmicas do que segurar na minha mão. A minha paixão se dissolveu. Não haveria retorno. Não, senhor! Irrevogável. Levantei apressadamente. Até um beijo no rosto seria impensável. Paguei com dinheiro. Ele, sentado, parecia alheio às minhas atitudes e desaprovações faciais. Sem atentar para a minha rebeldia feminina, perguntou: qual o valor da hora aula? Já de costas, continuei caminhando. Os livros vou vender para o Sebo do Messias, planejei. Negativo, vou doar, mais digno. Peguei um ônibus até a Av. Paulista, em busca de um lugar onde pudesse desanuviar e tomar um café. Ainda no coletivo, reli a dedicatória: “Para Sofia, do olhar abismal e lúcido. Com carinho.” E li mais uma vez e outra vez em voz alta. O real caiu verticalmente na minha cabeça perfurando a minha imaginação. Friedrich Wilhelm Nietzsche queria filosofar comigo. Só. Entrei numa livraria e perguntei: tem livro de autoajuda?
6 comments:
Nossa,adorei tudo isso!
No começo me assustou um pouco,mas o final foi muito bom.Nos dias de hoje o que não falta são os "Nietzsches"da vida real.
Tenho uma amiga terapeuta que sempre diz que os homens que leem muito Nietzsche são os homens que não querem nada com nenhuma mulher,será verdade?
Adorei!Parabens
Cultura de massa e mundo globalizado, parte de tudo que Nietzsche previu e negou. Imagina ele nesse mundo moderno... assim tudo perde o charme... abraços!
Hahaha! O escritor Ray Bradbury diz que “a ficção não é apenas a arte do possível, mas do óbvio”. Pelo jeito, raros são os intelectuais libidinosos. Ainda bem que sempre existem exceções para contrariar a regra. Achava que Nietzsche seria uma dessas exceções - ledo engano. No final das contas, o erro foi meu, antes de sair com ele, deveria ter conversado com a Lou Salomé ;)
Beto, saudade dos seus textos!
Pati, estava com saudade e resolvi, depois de muito tempo, entrar por aqui pra saber de vc. Já está tarde, eu estou cansada e não queria ligar.
Meu blog anda tão desatualizado e eu tão sem vontade de atualizá-lo que cheguei a pensar que blog tinha virado disquete, era agora algo exótico, retrô, old school. Bom, talvez até já seja, mas eu sempre fui meio antiga mesmo, então tudo bem. Mas eis que aqui estou, encantada com a sua crônica. Amei e me assustei. Até tu Nietzche? Deve ser por isso que não gosto muito de me aproximar de quem admiro muito. Mentira. Sempre quero beijar na boca desses artistas e filósofos!!!
Amiga, vc anda inspirada, hein? Quero ouvir os seus silêncios. E te contar os meus também.
Um beijo bem grande , Lud
Lud, você eu e su somos inexplicáveis. Ontem pensei tanto em você. Pensei que deveríamos escrever uma peça juntas, montar uma companhia de teatro, sacudir o mundo. Mostrar para a sociedade que a arte ainda dá conta de ser revolucionária, mesmo quando ninguém mais acredita no poder subversivo da poética. Ai, Lud, para usar as suas palavras, como eu queria que nós fizéssemos um espetáculo que mudasse o curso da história... muita coisa para trocar com vc, como sempre. Vou lá no seu blog. E sim, vamos continuar desejando os beijos de todos estes homens incríveis que nós admiramos, beijos de língua, ardentes e inflamados.
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