Por volta do meio-dia, estava na praça da Vila do Vale do
Capão, quando um desconhecido me viu e caminhou na minha direção. Neste dia, o
local estava com um movimento grande de pessoas.
Desconhecido: Nos conocíamos de antes?
Balancei a cabeça negativamente, visivelmente emocionada.
Desconhecido: Es que me parece un deja vù.
Pat: Preciso segurar a sua mão para poder lhe dizer isso:
muito obrigada! Você me viu! Você pode imaginar a alegria que eu estou
sentindo? Agora eu existo!
Desconhecido: Estás bien?
Pat: Eu não sou louca. Sei que está parecendo, mas não sou.
Desconhecido: Non, yo pensé que te conocía...
Pat: Deixa eu lhe explicar. Durante quase 30 dias, fiquei
num chalé no alto da montanha, meditando sozinha, sem ouvir música, ler,
escrever, acessar a internet, usar o celular ou conversar com pessoas. Hoje,
pela primeira vez, resolvi sair para dar uma volta na vila.
Desconhecido: En serio?
Pat: Sim. A minha cabeça flutuava que nem um balão inflado
com gás hélio preso apenas a um fio de nylon. Ficava balançando de lá pra cá e
daqui pra lá. Estava tão solta, que tive que segurá-la com as mãos para que
parasse quieta no pescoço.
Ele me olhava com curiosidade.
Pat: Comecei a andar pela rua, na esperança de que alguma
energia chegasse na parte de cima do meu corpo. Dei uma volta ao redor da
igreja e, olhando para as pessoas que passavam por mim, tive a sensação de que
ninguém me via. Percebi que eu tinha me tornado invisível. Foi aterrorizante.
Tive medo de ficar assim para o resto da vida.
Desconhecido: Non te entiendo.
Pat: Juro que não usei droga nenhuma, não bebi álcool, não
fumei, não tomei Daime. Nada, nada, foi só oxigênio.
Ainda desordenada, senti as lágrimas rolarem no meu rosto.
Abracei o meu mais novo velho amigo de infância.
Pat:. Estava me sentindo inexistente no meio das pessoas e
você me enxergou.
Desconhecido: También para mi fue un poco raro.
Pat: Sei que dizendo isso parece que eu tenho um parafuso a
menos, mas acredite, sou uma pessoa íntegra e de bom coração. Acho que meditei
demais.
Desconhecido: Qué tal una cerveja?
Odeio cerveja, mas os paradoxos da vida se revelam em
momentos de pânico. Aceitei o convite com alegria. Enquanto caminhávamos na
direção do bar, ele começou a me fazer perguntas:
Desconhecido: Por que resolviste meditar por tanto tiempo?
Pat: Eu não sei. Melhor, sei, mas acho que é uma história um
pouco longa para explicar.
Desconhecido: Segura?
Pat: Vou tentar, caso contrário você não vai acreditar que
eu sou normal. No ano passado, fiquei dez dias em silêncio absoluto num retiro
chamado Vipassana, já ouviu falar?
Negou.
Pat: Bem, dizem que foi a técnica que o Buda utilizou para
se iluminar. Mas não fiz isso para me iluminar, de jeito nenhum. Só achei que
se viesse sozinha para cá e ficasse em silêncio por um período ainda mais
longo, seria bom pra mim. Fantasiei que, por alguma intervenção divina, poderia
acessar a minha missão de vida. Eu tenho esse sonho... ou tinha. Agora nem sei
mais. Estou desiludida.
Desconhecido: Pero ha valido la pena?
Pat: Nao sei. Talvez este seja o começo de uma vida real.
A essa altura, já estávamos no boteco Flamboyant, ao lado de
um supermercado homônimo.
Pat: Me conte de você.
Desconhecido: Voy a coger la cerveza.
Ele voltou e encheu o meu copo. Saboreei um gole e olhando
maravilhada para o líquido amarelado, disse alto:
Pat: Cerveja. Cerve-ja. Cer-ve-ja.
Mesa, cadeira, copo, cerveja. Era como se estivesse
vivenciando cada objeto pela primeira vez. Será que eu renasci? Será que foi
este o resultado da minha meditação? Estou num mundo novo e admirável?
Bebi a cerveja devagar. Voltei a olhar para aquela pessoa
generosa. Quanta beleza havia nele. Era comovente:
Pat: Que pessoa bonita que você é.
Desconhecido: Gracias. Tu en que trabajas?
Pat: Trabalhava como executiva em uma empresa, mas resolvi
largar tudo, há um tempo atrás.
Desconhecido: Dónde hás trabajado?
Pat: No Google.
Desconhecido: En Estados Unidos?
Pat: Em São Paulo.
Desconhecido: Y qué haces ahora?
Pat: Estou aprendendo a não fazer nada.
Desconhecido (rindo): Y estas indo bién?
Pat: Mais ou menos. As distrações me desviam do foco.
Peguei o seu chapéu preto, estilo cowboy, que estava em cima
da mesa de metal e coloquei na minha cabeça. Senti o peso do feltro. Um limite
concreto. Um alento.
Pat: O meu nome é Patrícia. Como você se chama? De onde você
é?
Desconhecido: Me llamo Salvador. Salvador Dali. Soy espanol,
de Cataluna, pero vivo en Madrid. He venido al Vale do Capon a buscar
inspiración.
Pat: Veio ao lugar certo. Você faz o quê?
Salvador Dali: A los seis años quería ser cocinero. A los
siete, Napoleón. Mi ambición no ha hecho más que crecer; ahora sólo quiero ser
Salvador Dalí y nada más. Por otra parte, esto es muy difícil, ya que, a medida
que me acerco a Salvador Dalí, él se aleja de mi.
Pat (risos): Uma contradição diária.
Salvador Dali: Que
crea vida.
Sorri.
Pat: Mas, então você entendeu quando eu disse que estou
aprendendo a não fazer nada.
Salvador Dali: Si, por supuesto. Pero pienso que el tiempo
es una de las pocas cosas importantes que nos quedan.
Pat: O tempo e o silêncio. Geradores de estrelas.
Salvador Dali: Tan poco de lo que puede ocurrir, ocurre.
Suspirei.
Pat: Você está
viajando sozinho?
Salvador Dali: Nunca estoy solo. Tengo la costumbre de estar
siempre con Salvador Dalí. Créame, eso es una fiesta permanente.
Rimos os dois.
Salvador me contou longamente sobre a sua vida, suas viagens
exóticas e suas incursões em processos inconscientes. Disse-me que era pintor,
mas que adorava escrever. Revelou que passava grande parte do seu tempo captando
as diferentes dimensões da realidade e que um dos objetivos da sua visita
àquela região era participar das práticas xamânicas e beber ayuasca.
Enquanto conversávamos, um frisson inusitado me aconteceu:
olhei nos olhos dele e me vi inteira dentro de sua íris. Não estou utilizando
aquela boa, mas batida metáfora do espelho. Estou relatando uma experiência
verídica. Só quem já passou por isso, vai conseguir acreditar em mim. Um estado
puro de atenção que lhe transporta para uma abertura plena. Via o outro e no
outro, me via. Era sutil, quem sabe até, metafísico, mas real. Eu estava dentro
dos olhos de Salvador Dali.
Dizem que o ruim é o excesso do bom. O que era
transcendente, virou opressivo. Como são afrontativos os olhos que, sem trégua,
mostram quem você é! Busquei ao meu redor um olhar que pudesse fundir com o meu.
Sem sucesso. O incômodo foi crescendo, na mesma proporção em que recobrava o
juízo critico: já conhecia aquele bar, a cerveja era amarga e a prática
meditativa não contempla objetivos. Mas sim, a minha cabeça continuava se
movimentando involuntariamente e Salvador Dali era, de fato, um ser autêntico e
simpático. Entretanto, por mais divertido que ele fosse, ver a minha sombra em
seus olhos ligeiramente arregalados me trazia um desconforto que eu não estava
mais conseguindo suportar.
Pat: Acho que vou indo.
Salvador Dali: Quedate más un poco. Ya comiste? Me gustaría
pedir unas coxinhas. Son ricas. En Espana no hay.
Pat: Obrigada, você é muito gentil, mas preciso ir.
Salvador Dali: Por que?
Expliquei para ele a experiência do meu corpo dentro do seu
olhar. Ele, evidentemente, não sentiu, nem de longe, o mesmo, mas adorou o que
denominou de alucinação projetiva.
Pat: Agora vou mesmo.
Salvador Dali: Me quedo hasta domingo. Si quieres, podemos
hacer unas sendas. Eres
bienvenida.
Agradeci, tirei o chapéu e me despedi, anotando o meu e-mail
em sua agenda.
Fui me afastando lentamente, enquanto tentava conectar a
experiência com o nome dele. Terá sido um sinal? Qual? Não! Chega de achar que
todos os encontros estão plasmados no inconsciente coletivo e que possuem um
significado oculto. Um encontro é apenas um encontro. Um acontecimento fortuito
entre duas pessoas e sem razão secreta. Tomei uma cerveja com Salva-dor D-ali.
Foi só isso.
2 comments:
Emocionei;)
E prezo muito nosso encontro. Sei q posso chamar vc de amiga. Ou de irmã.
Também! Te adoro demais!
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