Saturday, September 07, 2013

A minha avó Sinhá


Hoje acordei lembrando dos ensinamentos da minha voinha Sinhá, desde os tempos em que eu tomava banho de mangueira no quintal de sua casa e roubava as balas que ficavam trancadas no armário da cozinha.

Foi a minha avó Sinhá que me ensinou a colocar a linha no buraco da agulha, pregar botão, cortar o tecido, enfiar os alfinetes e criar vestidos de bonecas, os quais ela, aliás, costurava com muito carinho à semelhança dos meus próprios vestidos, também confeccionados por ela na sua máquina preta de pedal. 

Acho que foi a minha mãe que me ensinou a rezar, não me recordo muito bem, mas foi a minha avó que me ensinou a ter fé. A acreditar nas tais linhas tortas, que são certas. 

Um dia qualquer, depois que me separei, sentei na cozinha do meu apartamento, acendi uma vela, fiz de conta que a minha avó estava lá presente comigo e comecei a conversar com ela. Precisava revisitar a minha infância e tentar esclarecer questões que, de alguma forma, permaneciam nebulosas. Ficamos  horas papeando sobre inúmeras situações do passado. Fomos de A a Z. 

De todas as "letras" que me incomodavam, tinha o "M" sobre o qual eu me questionava freqüentemente: por que os meus pais mentiam pra mim? Não estou falando aqui de grandes segredos de família, mas de qualquer mentira, mesmo as bestas, como “Mãe, o que é motel?” Motel é um hotel longe. Pai, falta muito pra chegar? Tá mais perto do que antes. Minha filha, vamos ali e voltamos já. E demoravam horrores para retornar. Como disse, coisa besta, figura de linguagem até, mas a minha alma de criança, vai saber porque, se ressentia disso, se ressentia das mentiras de qualquer tipo contadas não só pelos meus pais, mas por todos os pais em todas as eras da Humanidade. 

Essa - talvez - bobagem que chateou a minha criança interior durante anos, foi resolvida por minha avó numa sentada. Pensei que ela fosse argumentar que os meus pais queriam me proteger ou estavam com pressa ou qualquer uma dessas justificativas banais, que a mente pre-imagina. Entretanto, ela me disse: todas as vezes que eles mentiram foi por um só motivo: porque queriam ser pais perfeitos para você. Acreditavam que se fossem imperfeitos, não seriam amados. Fez tanto sentido pra mim. Pra mim e para as minhas próprias mentiras cotidianas. Para a minha necessidade de tentar ser perfeita para que o outro me aceite e me ame.  

No ano passado, viajei até o interior da Bahia e fui visitá-la na casa onde ela mora, a mesma desde que nasci.

- Vó, você faz um chá de cidreira pra mim?
- Vá lá no quintal pegar as folhas.

Fui no quintal e não encontrei as folhas - claro! É maluco isso, mas parece que é sempre mais gostoso quando uma avó acha as coisas pra gente, quando faz um chá que facilmente teríamos feito. Então, a minha avó levantou do sofá, foi até o quintal (eu atrás dela) e, sem nem pegar no corrimão, subiu as escadas que levam até os vasos de plantas. Passos firmes, corpo altivo. Na seqüência, desceu as escadas da mesma forma, foi até o fogão - que foi da minha mãe - e fez o chá. Começamos a beber e engatamos uma conversa.

- Pat, quero morrer. Tá na hora.
- Não depende de você, vó.
- Mas Deus já podia me levar. Conversei com ele.
- Já disse, vó. Morte acontece. Não depende de reza, de pedido, de querência.
- Vivi demais.
- Quem determina isso não é a Senhora, é o universo.
- 93 anos. É muito tempo, você não acha?
- Neste assunto eu não acho nada. Quem acha é Deus.
- Bem, eu tô pronta.
- Algumas pessoas não estão prontas e morrem do mesmo jeito.
- Passou da hora de eu ir.
- Vó, deixa de ser cabeça dura. Não se morre por decreto.
- Só avisei a Deus que, quando ele quiser, já pode vir me buscar.
- Quando ele quiser, ele vem.

É, hoje acordei pensando na minha avó, na sua voz clara quando, vira e mexe, falamos ao telefone, na sua audição impecável aos 94 anos. Nos seus ensinamentos sobre a vida e no meu aprendizado com ela sobre a impossibilidade de se decretar um final ao que ainda pulsa.  

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