Às 6:33 me foi dada a lucidez.
Não roubei. Me entregaram depois de ter encontrado com ele, olhado nos seus olhos
e percebido que não é pavoroso, é só um pobre coitado como eu. Estava acordada
quando o sol nasceu no meio da minha testa e ele entrou no quarto. Mesmo
desperta, me sentia desorientada. Séculos de doutrina cristã me catequizaram para
o bom, bonito e belo, mas ninguém me preparou para a purulenta sombra. Ele se
aproximou. De tão surpresa, só me ocorreu encará-lo. O que pode uma
mulher de 80 anos, à beira da morte, desdentada e nua, em cima de uma cama num
quarto fechado, fazer quando Lúcifer chega? Gritar? A solidão não me permitiu.
Emocionei. Sou agnóstica, mas a idade me fez compreender que o absoluto
persegue os desumanos e que com ou sem divindade, somos todos iguais: falhos.
É, ele olhou nos meus olhos, me viu sem artifícios. Consenti. Passei tanto
tempo desejando que alguém me amasse assim, com a barriga caindo no chão, peito
flácido pendendo na cintura, cabelo ralo, branco, sal de frutas, que quando o tinhoso
chegou, o medo já era desejo. Era a vontade de que alguém gostasse de mim
mancando com a perna direita e tremendo com as mãos, que elogiasse o bigode
grosso e cinza acima dos lábios murchos. Quando, desnuda, gaguejei a palavra
amor, o demônio me deu um abraço longo. Se não fosse piegas dizer que os meus
olhos lacrimejaram, diria. Prefiro admitir que a dignidade me fez chorar. A
dignidade dele. O diabo me encontrou decrépita e não me subjugou. No meu
desamparo, ele não me humilhou. Usou o seu poder para me aceitar. Você rouba almas?
Me acolheu. São as próprias pessoas que se rifam, se vergam, se renunciam. Vi
na face dele a de Deus. Por que? Truques. É da música que a vida canta, atinar
que o Diabo é Deus. O sagrado e o profano, um só, a ciência e a religião,
brincadeiras de passatempo. Olhei de novo e vi na face dele, a minha. O fim das ilusões chegou numa piada. Gargalhei.
Wednesday, March 22, 2017
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