Wednesday, March 22, 2017

No meio da testa


Às 6:33 me foi dada a lucidez. Não roubei. Me entregaram depois de ter encontrado com ele, olhado nos seus olhos e percebido que não é pavoroso, é só um pobre coitado como eu. Estava acordada quando o sol nasceu no meio da minha testa e ele entrou no quarto. Mesmo desperta, me sentia desorientada. Séculos de doutrina cristã me catequizaram para o bom, bonito e belo, mas ninguém me preparou para a purulenta sombra. Ele se aproximou. De tão surpresa, só me ocorreu encará-lo. O que pode uma mulher de 80 anos, à beira da morte, desdentada e nua, em cima de uma cama num quarto fechado, fazer quando Lúcifer chega? Gritar? A solidão não me permitiu. Emocionei. Sou agnóstica, mas a idade me fez compreender que o absoluto persegue os desumanos e que com ou sem divindade, somos todos iguais: falhos. É, ele olhou nos meus olhos, me viu sem artifícios. Consenti. Passei tanto tempo desejando que alguém me amasse assim, com a barriga caindo no chão, peito flácido pendendo na cintura, cabelo ralo, branco, sal de frutas, que quando o tinhoso chegou, o medo já era desejo. Era a vontade de que alguém gostasse de mim mancando com a perna direita e tremendo com as mãos, que elogiasse o bigode grosso e cinza acima dos lábios murchos. Quando, desnuda, gaguejei a palavra amor, o demônio me deu um abraço longo. Se não fosse piegas dizer que os meus olhos lacrimejaram, diria. Prefiro admitir que a dignidade me fez chorar. A dignidade dele. O diabo me encontrou decrépita e não me subjugou. No meu desamparo, ele não me humilhou. Usou o seu poder para me aceitar. Você rouba almas? Me acolheu. São as próprias pessoas que se rifam, se vergam, se renunciam. Vi na face dele a de Deus. Por que? Truques. É da música que a vida canta, atinar que o Diabo é Deus. O sagrado e o profano, um só, a ciência e a religião, brincadeiras de passatempo. Olhei de novo e vi na face dele, a minha. O fim das ilusões chegou numa piada. Gargalhei.

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