Vale do Capão, janeiro de 2013.
Quando o terceiro olho se manifestou, fiquei deslumbrada. Era como se estivesse vendo as cores pela primeira vez na vida. Nunca
um vermelho tinha sido tão vermelho. Era como se todos os eventos do universo fossem quadros dinâmicos pintados pelo Van Gogh. Durante um bom tempo fiquei assistindo, no meio da minha testa, ao que nem nome tinha. Um caleidoscópio das verdades absolutas? Extasiada, repetia: a ciência nunca será capaz de captar ou reproduzir o divino. Entretanto, de atração passei a sentir um medo imenso porque eu não tinha nenhum controle
sobre esse olhar quântico. Imagine o seguinte: e se os nossos olhos, eles próprios, escolhessem os acontecimentos que querem ver? E se os nossos olhos jamais se fechassem? Senti pânico: esse olho vai ficar para sempre aberto. Não vou aguentar tanta lucidez. E havia mais, sentia que em mim operava uma espécie de instância intra-psíquica superior, alguém ou algo que gerenciava os segredos e eu só observava. Resumindo, era em mim, mas quem olhava era outro. E eu via o olhar do outro, sabendo que, no fundo, era o meu próprio olhar.
Diante dessa circunstância inicialmente sublime, mas, com o tempo, bizarra, o meu desespero foi tão
genuíno que comecei a negociar com esse agente que estava (ou parecia estar) instalado no meu cérebro. Enquanto as imagens dinâmicas e multi-dimensionais (quantos Ds será que foram?) iam se desdobrando na minha frente, eu ia tentando sair dessa situação. Meu
lindo, me libere dessa. Sério. Repare só, eu sou uma daquelas pessoas realmente
covardes e clarividência não é pra mim. Quando vejo as coisas antes que
elas aconteçam é um peso da porra. Fora que sempre parece culhuda. Na boa, nem sei o que fazer com isso.
Falar para as pessoas “eu vejo o que você não vê” para mim é prepotência. Ficar calada é
de se lenhar. Rapaz, me libere dessa, mesmo! Eu quero é ficar de boa, conversando
com os meus amigos sobre música, teatro, poesia. É ouvir as histórias dos
amores e desamores das minhas amigas, enquanto a gente cozinha e dá risada. Nem
sei porque vocês inventaram essa maluquice de terceira visão pra cima de mim. Na moral, eu não tenho, nem nunca tive, vontade de virar cartomante,
mãe de santo, iluminada, guru ou ser uma dessas figuras de “autoridade” espiritual.
Respeito quem faz isso. Mas eu, euzinha, quero ter sorte no
amor e muito azar nos jogos manpulativos. Pode não parecer, mas tô a fim mesmo é
de coisa simples, é de viajar contemplando a paisagem na companhia de gente bacana. Sei que tô meio perdida, mas vamos e
venhamos que é uma perdição relativamente saudável, menos subserviente, menos
mandona, mais suave, numa levada rítmica. Acredite, é nessa toada que quero tocar a minha vida, cantando, dançando, escrevendo, brincando, chorando,
rindo, tropeçando, criando. Criando! Isso. Que tal a gente trocar essa história
mística de terceira visão pela fertilidade do Nilo? Bora? Uma fonte criativa
jorrando continuamente dentro de mim seria massa demais.
Após ficar horas nessa ladainha com esse "agente
superior", o terceiro olho se fechou. Fiquei aliviada por ter sido liberada do processo, pelo menos, naquele momento. Aí me toquei: tô enlouquecendo. Um medo
descomunal tomou conta de mim. Comecei a conversar comigo mesma: pronto, tô surtando. Eu me desconectei
tanto da realidade que fiquei louca. O próximo passo é sair rasgando dinheiro
pela rua. Ou fazer que nem a minha avó paterna, que teve Alzheimer e, aos 70 anos,
dizia para todo mundo que ia para Hollywood trabalhar como atriz. Céus, como eu fui cair nessa? Sempre fui uma pessoa tão pragmática. Será essa uma pegadinha
do universo? Toma aí, Pat, você que sempre se achou pé no chão, agora vai
experimentar a loucura. E se for uma lavagem cerebral realizada por alguma sinapse
do meu cérebro que entrou em looping com tanto oxigênio? Sinapse pode entrar em looping? Alô, como eu faço para voltar para a
normalidade? Putz, mas eu sou normal. É normal nada. Quem é normal não fica
negociando com forças ditas superiores alojadas em algum lugar da cabeça. Mas
tem o livro do Joseph Campbell, lá ele comenta que existe algo assim, eu me
lembro. Acho que me lembro. Peraí, será que Joseph Campbell existiu mesmo? Será que projetei essa pessoa? Inventei a Jornada do Herói? Pat, agora deixou de ser loucura, para ser sandice de último grau. Se liga, aqui não é Matrix,
Avatar, The Truman Show, aqui é um chalé no meio da Chapada Diamantina. Você é uma mulher comum. Além do mais, louco
sempre nega a loucura. Se você está conscientemente refletindo sobre isso é porque está plena das suas
faculdades mentais. Você estava meditando e exagerou na dose, como sempre. Retenha isso: menos intensidade. Levante
e vá tomar um banho. OK, você tem razão, tanto tempo meditando foi over, mas vamos ser compassivos, lembrando que não tinha como adivinhar que o meu corpo iria, ele todo, funcionar de forma autônoma, sendo eu, apenas uma mera observadora. Olha
só, aprendi a lição e não pretendo repetir essa maluquice, mas que essa terceira visão entrou em mim, ah, isso sim. Foi tão real quanto a água do chuveiro que daqui a pouco vai cair
na minha cabeça. E eu não quero isso na minha vida. Lamento, mas você não possui controle sobre a manifestação da
terceira visão. Tudo bem, não controlo, mas preciso me posicionar para seja lá quem esteja operando esse cinema multi-D: por favor, me libere dessas sessões.
Em seguida, sem pensar, levantei e olhei o
relógio que marcava três horas da manhã. Muito bem, três horas da manhã de algum dia da semana. Fui tomar banho sem noção de quanto tempo fui meditada ininterruptamente. Dois dias, em jejum involuntário, será? Depois, fui comer na
cozinha que ficava fora do chalé, morrendo de medo das aranhas que haviam se aglomerado por todos os lados. Umas dez? Com a presença das aracnídeas, umas maiores, outras menores, rapidamente o mundo voltou a ser bem concreto de novo. Embora o meu instinto inicial tenha sido o de me livrar delas "já!", refleti que seria maldade assassinar nossas amigas tecedoras do universo. Acabei me resignando ao fato de que a natureza é algo vivo e não um programa espetacularizado do Discovery Channel. Deixei as bichinhas em paz. Comi depressa, com receio de que a aranha armadeira voltasse a pular no centro do meu peito
como havia feito dias antes.
Apesar da fraqueza das pernas, voltei para o
quarto correndo, vesti a camisola e sentei na cama: Pat, por que você inventa
essas coisas? Ficar sozinha no meio do nada? Tá na hora de você amadurecer e
parar com essas excentricidades. Você estava feliz em Sampa, não tava? Se você
estivesse mal, até entenderia, mas não era o caso. Tinha que ficar tanto
tempo isolada apenas para reafirmar o que você já sabia? Que quem consegue ser
feliz sozinho entende que o bom mesmo é ser feliz com os outros... de repente, como
se uma nova e cristalina freqüência sonora entrasse no meu ouvido, escutei uma cantiga entoada por uma mulher rendeira. Será essa a melodia das mulheres que eternamente nos aconchegam em seus colos, mesmo quando já somos adultos ou velhos? Que perdoam todos os nossos pecados, desde os mais miseráveis até aqueles que nem sabemos que cometemos? Que nos redimem de nossa exaustão? Ninada neste acalanto, adormeci.
Até hoje não tenho certeza se essa mulher estava mesmo passando
pela rua naquela madrugada ou se tive acesso a alguma trilha sonora do
universo. Songlines? Acordei no outro dia feliz por aceitar que o bom do mistério é que ele permanece o que é. Estava alegre por poder transitar na realidade e comer banana
frita no café da manhã.