Sunday, February 17, 2013

Meditando no Vale do Capão - Parte II

Vale do Capão, janeiro de 2013.



Quando o terceiro olho se manifestou, fiquei deslumbrada. Era como se estivesse vendo as cores pela primeira vez na vida. Nunca um vermelho tinha sido tão vermelho. Era como se todos os eventos do universo fossem quadros dinâmicos pintados pelo Van Gogh. Durante um bom tempo fiquei assistindo, no meio da minha testa, ao que nem nome tinha. Um caleidoscópio das verdades absolutas? Extasiada, repetia: a ciência nunca será capaz de captar ou reproduzir o divino. Entretanto, de atração passei a sentir um medo imenso porque eu não tinha nenhum controle sobre esse olhar quântico. Imagine o seguinte: e se os nossos olhos, eles próprios, escolhessem os acontecimentos que querem ver? E se os nossos olhos jamais se fechassem? Senti pânico: esse olho vai ficar para sempre aberto. Não vou aguentar tanta lucidez. E havia mais, sentia que em mim operava uma espécie de instância intra-psíquica superior, alguém ou algo que gerenciava os segredos e eu só observava. Resumindo, era em mim, mas quem olhava era outro. E eu via o olhar do outro, sabendo que, no fundo, era o meu próprio olhar.  

Diante dessa circunstância inicialmente sublime, mas, com o tempo, bizarra, o meu desespero foi tão genuíno que comecei a negociar com esse agente que estava (ou parecia estar) instalado no meu cérebro. Enquanto as imagens dinâmicas e multi-dimensionais (quantos Ds será que foram?) iam se desdobrando na minha frente, eu ia tentando sair dessa situação. Meu lindo, me libere dessa. Sério. Repare só, eu sou uma daquelas pessoas realmente covardes e clarividência não é pra mim. Quando vejo as coisas antes que elas aconteçam é um peso da porra. Fora que sempre parece culhuda.  Na boa, nem sei o que fazer com isso. Falar para as pessoas “eu vejo o que você não vê” para mim é prepotência. Ficar calada é de se lenhar. Rapaz, me libere dessa, mesmo! Eu quero é ficar de boa, conversando com os meus amigos sobre música, teatro, poesia. É ouvir as histórias dos amores e desamores das minhas amigas, enquanto a gente cozinha e dá risada. Nem sei porque vocês inventaram essa maluquice de terceira visão pra cima de mim. Na moral, eu não tenho, nem nunca tive, vontade de virar cartomante, mãe de santo, iluminada, guru ou ser uma dessas figuras de “autoridade” espiritual. Respeito quem faz isso. Mas eu, euzinha, quero ter sorte no amor e muito azar nos jogos manpulativos. Pode não parecer, mas tô a fim mesmo é de coisa simples, é de viajar contemplando a paisagem na companhia de gente bacana. Sei que tô meio perdida, mas vamos e venhamos que é uma perdição relativamente saudável, menos subserviente, menos mandona, mais suave, numa levada rítmica. Acredite, é nessa toada que quero tocar a minha vida, cantando, dançando, escrevendo, brincando, chorando, rindo, tropeçando, criando. Criando! Isso. Que tal a gente trocar essa história mística de terceira visão pela fertilidade do Nilo? Bora? Uma fonte criativa jorrando continuamente dentro de mim seria massa demais.

Após ficar horas nessa ladainha com esse "agente superior", o terceiro olho se fechou. Fiquei aliviada por ter sido liberada do processo, pelo menos, naquele momento. Aí me toquei: tô enlouquecendo. Um medo descomunal tomou conta de mim. Comecei a conversar comigo mesma:  pronto, tô surtando. Eu me desconectei tanto da realidade que fiquei louca. O próximo passo é sair rasgando dinheiro pela rua. Ou fazer que nem a minha avó paterna, que teve Alzheimer e, aos 70 anos, dizia para todo mundo que ia para Hollywood trabalhar como atriz. Céus, como eu fui cair nessa? Sempre fui uma pessoa tão pragmática. Será essa uma pegadinha do universo? Toma aí, Pat, você que sempre se achou pé no chão, agora vai experimentar a loucura. E se for uma lavagem cerebral realizada por alguma sinapse do meu cérebro que entrou em looping com tanto oxigênio? Sinapse pode entrar em looping? Alô, como eu faço para voltar para a normalidade? Putz, mas eu sou normal. É normal nada. Quem é normal não fica negociando com forças ditas superiores alojadas em algum lugar da cabeça. Mas tem o livro do Joseph Campbell, lá ele comenta que existe algo assim, eu me lembro. Acho que me lembro. Peraí, será que Joseph Campbell existiu mesmo? Será que projetei essa pessoa? Inventei a Jornada do Herói? Pat, agora deixou de ser loucura, para ser sandice de último grau. Se liga, aqui não é Matrix, Avatar, The Truman Show, aqui é um chalé no meio da Chapada Diamantina. Você é uma mulher comum. Além do mais, louco sempre nega a loucura. Se você está conscientemente refletindo sobre  isso é porque está plena das suas faculdades mentais. Você estava meditando e exagerou na dose, como sempre. Retenha isso: menos intensidade. Levante e vá tomar um banho. OK, você tem razão, tanto tempo meditando foi over, mas vamos ser compassivos, lembrando que não tinha como adivinhar que o meu corpo iria, ele todo, funcionar de forma autônoma, sendo eu, apenas uma mera observadora. Olha só, aprendi a lição e não pretendo repetir essa maluquice, mas que essa terceira visão entrou em mim, ah, isso sim. Foi tão real quanto a água do chuveiro que daqui a pouco vai cair na minha cabeça. E eu não quero isso na minha vida. Lamento, mas você não possui controle sobre a manifestação da terceira visão. Tudo bem, não controlo, mas preciso me posicionar para seja lá quem esteja operando esse cinema multi-D: por favor, me libere dessas sessões. 

Em seguida, sem pensar, levantei e olhei o relógio que marcava três horas da manhã. Muito bem, três horas da manhã de algum dia da semana. Fui tomar banho sem noção de quanto tempo fui meditada ininterruptamente. Dois dias, em jejum involuntário, será? Depois, fui comer na cozinha que ficava fora do chalé, morrendo de medo das aranhas que haviam se aglomerado por todos os lados. Umas dez? Com a presença das aracnídeas, umas maiores, outras menores, rapidamente o mundo voltou a ser bem concreto de novo. Embora o meu instinto inicial tenha sido o de me livrar delas "já!", refleti que seria maldade assassinar nossas amigas tecedoras do universo. Acabei me resignando ao fato de que a natureza é algo vivo e não um programa espetacularizado do Discovery Channel. Deixei as bichinhas em paz. Comi depressa, com receio de que a aranha armadeira voltasse a pular no centro do meu peito como havia feito dias antes.

Apesar da fraqueza das pernas, voltei para o quarto correndo, vesti a camisola e sentei na cama: Pat, por que você inventa essas coisas? Ficar sozinha no meio do nada? Tá na hora de você amadurecer e parar com essas excentricidades. Você estava feliz em Sampa, não tava? Se você estivesse mal, até entenderia, mas não era o caso. Tinha que ficar tanto tempo isolada apenas para reafirmar o que você já sabia? Que quem consegue ser feliz sozinho entende que o bom mesmo é ser feliz com os outros... de repente, como se uma nova e cristalina freqüência sonora entrasse no meu ouvido,  escutei uma cantiga entoada por uma mulher rendeira. Será essa a melodia das mulheres que eternamente nos aconchegam em seus colos, mesmo quando já somos adultos ou velhos? Que perdoam todos os nossos pecados, desde os mais miseráveis até aqueles que nem sabemos que cometemos? Que nos redimem de nossa exaustão? Ninada neste acalanto, adormeci.

Até hoje não tenho certeza se essa mulher estava mesmo passando pela rua naquela madrugada ou se tive acesso a alguma trilha sonora do universo. Songlines? Acordei no outro dia feliz por aceitar que o bom do mistério é que ele permanece o que é. Estava alegre por poder transitar na realidade e comer banana frita no café da manhã.

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